Layout / Art: Ana.

sábado, junho 09, 2007

Uma lembrança, um cheiro

A gente pegava dois trens sempre que íamos viajar.
Para visitar a família da minha mãe, era o trem para Montes Claros.
Família do meu pai, ah.. era o Vera Cruz, direto para o Rio de Janeiro.
Cada um deixou um cheiro na minha memória.
O cheiro do trem de Montes Claros era quente, abafado. Misturava poeira com fumaça, e quando chegávamos a Bocaiúva, quase fim de viagem, eu já havia dormido muito.
Acordada, excitada e feliz, eu ficava na janela da cabine.
Curiosamente ali eu nunca precisei disputar o lugar com minha irmã.
Ah..., por que ela era muito bonita, e minha mãe não a deixava ficar na janela.
Minha mãe dizia que se "algum cigano a visse, iria querer levá-la"...
Só mais tarde entendi a preferência da minha mãe, mas...fiquei bem, freudianamente falando.... Da janela eu sentia o vento, que batia no meu rosto misturado com o cheiro que eu chamo até hoje de cheiro de fazenda: - terra, mato, poeira, côcô de vaca, fumaça....
Tinha cheiro de comida, de fogão de lenha.
A parada em Bocaiúva era rápida. Servia apenas para ver alguns parentes pela janela, receber presentes que eram doces feitos pela dindinha Gabriela :- de laranja e de cidra -, e para ouvir minha mãe prometer que "na volta daríamos uma paradinha lá"... Meus parentes de Bocaiúva tinham nomes engraçados. Minha mãe sempre me beliscava porque ria deles: - "Sinhô, didinha Gabriela, Tia Negrinha( que era branquinha), e Elmira, minha prima".... / quando com 15 anos debutei em Bocaiúva fiz muito sucesso, fui a primeira hippie da cidade, escândalo fatal na família.../ Depois de Bocaiúva, primeira parte da chegada, era a descida - Pires De Albuquerque! Cidadezinha no meio do nada, era lá o inicio da fazenda de meu avô Batista, pai da minha mãe.
Quando descíamos, todos os empregados carregavam as malas, e seguíamos para Montes Claros nos carros de meu avô. Naquela época, minha mãe era rica. Eu adorava as malas de Montes Claros, por que minha mãe embrulhava nossas roupas em lençois brancos para que elas não pegassem poeira ou ficassem como cheiro, mas não adiantava, por que elas chegavam impregnadas pelo o cheiro do trem...
Em Pires de Albuquerque, nome que nunca esqueci, ficava uma das lojas do meu avô. Era dessas lojas que vendiam de tudo, desde cabaças, pratinhos de alumínio, canequinhas, panelinhas de barro, fogãozinho, bonecas de pano e de louça, ( eu amo essas bugigangas ), e panos...muitos panos...
O cheiro da loja me fascina até hoje, e consigo sentí-lo de uma forma tão forte que me emociona!Cheiro de pano. Eram prateleiras de tecidos: chitas, linho, seda, algodão, cetimpara fazer vestido de anjo, e cada um, cada pano tinha um cheiro e uma textura. Conseguem imaginar cheiros com textura? Eram cheiros mesmo!!!!!
Também é de lá que guardo uma das minhas lembranças preferidas; - minha lembrança de carinhos, mimos, e admiração.
Meu avô e meu pai, ao contrário da minha mãe, sempre me tratavam como a predileta!
Lá, ..." eu era amiga do rei..."
Desde a minha chegada até a volta, eu não saia do colo do meu Vô..... Ele me "punha sentada no balcão da loja, deixava eu ficar nas prateleiras de panos - eu podia tocar em todos os tecidos - e ...todos, todos os brinquedos da loja eram meus... Minha tia Bete, irmã pequena de minha mãe era ciumenta e ficava agarrada o tempo todo nas calças do meu avô...Meu tio Gugu, era um mistério, morava no seminário e ia ser padre. A minha avó...que saudades...
Comandava a casa, a mesa, e nossas vidas, até morrer, anos depois, em Belo Horizonte. mas isso é outra história. Com sua bengala de cabo de prata, era magestosa, a dona de tudo.
Coronela... dizem que ela mandou matar uma amante do meu avõ...mandou matar com surra...de tanto surrar..., e no meio da rua, para todo mundo saber quem era Nenzinha, mulher de Batista Gero.....Acho que é mais uma das lendas sobre minha avó....
Mas meu vô, ah... Doce vôvô Batista....
Olhos azuis, cheiro de fumo preto,dizia -se francês por descendência e atitude!
Com ele aprendi: un, deux, trois, quatre , cinq...
-" fala, Idyzinha, fala em francês para todo mundo ouvir"...
E lá ia eu repetindo, cabeça erguida, dos números até o "je vous salue marie"....
Minha irmã, calada, sempre impecável, cabelos de cachos, bela...
Eu, pequenininha, falante, princesa, cabelos pretos, lisos, escorridos,usava óculos desde que me lembro, assim como sempre "já sabia ler." Mas, lá nos Montes Claros, na casa dos Souza Lima, eu era a Idyzinha, a princesa do meu avô, a dona e herdeira de tudo. Fui a predileta enquanto durou...Fui a francesinha do meu avô, a bonequinha que falava...

O cheiro do Rio? Ah..., era outro.
Cheiro de fumaça com maresia, cheiro de cidade, cosmopolita,cheiro de mundo grande.Depois, ao longo de minhas viagens identifiquei o cheiro do trem que me levava para o Rio muitas vezes..
Mas o de Montes Claros...nunca mais....
Só lembranças.

Curiosamente, a vida me levou de volta a Bocaiúva anos depois.
Uma ação de execução, onde tive que acompanhar a penhora da casa do moinho, antiga residência dos Patrus Ananias, e que ficava ao lado da velha estação de trem, vizinha da casa da minha prima Elmira, filha de Negrinha e de Sinhô, neta de dindinha Gabriela....
Mas o cheiro, por mais que eu respirasse fundo, fugiu do meu olfato, e fiquei feito uma boba, lá parada, chorando, e fungando, tentando buscar no ar, o que o tempo havia levado.
Marilia / maio/2007

6 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo!!!!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Ola Marilia boa noite
E ai gostou mesmo das musicas? Bom muito bom, gostei que voce gostou.
Marilia, voce nao e tapadinha coisa
nenhuma, esta coisa chamada computa
dor e que e complicada mesmo, eu
tambem me socorro com meus filhos,
principalmente minha filha pois os outros dois ja casaram e partiram.
Sabe Marilia, voce nao deveria ter o direito de contar reminiscencias,
Pois elas tambem faz a gente sentir
saudades, inclusive de cheiros que
chego a sentir ate hoje, 57 anos de
pois. Mas isto eu conto em outra ocasiao. Lembrancas, saudades,arre
benta com o nosso emocional, fica dificil de segurar.Parabens.

Anônimo disse...

como é bom ter boas lembranças,né? mesmo que elas nos machuquem ao serem relembradas....
beijo e bom domingo!

Carlinha Salgueiro disse...

Que texto mais lindo, que lembranças mais belas. Adorei, sorvi cada uma das palavras... Posso dizer que quase senti os cheiros contigo...
Beijos!

Yvonne disse...

Marília, estou sentindo os cheiros. Menina, viajei agora com seu post. Que delícia! Beijocas

Anônimo disse...

Mae, amei o texto e as reminiscências...
hahahah.
beijos e parabéns pelo selo ! :)